top of page

Artigo

03 de dezembro de 2020

SOBRE A NATUREZA DA COVID-19 PARA FINS TRABALHISTAS, PREVIDENCIÁRIOS E CIVIS: TRAZENDO LUZES A ALGUMAS CONFUSÕES CONCEITUAIS

Caráter ocupacional, nexo de causalidade, responsabilidade civil e outros temas

NOTAS

Guilherme Guimarães Feliciano

Professor Associado II do Departamento de Direito do Trabalho e da Seguridade Social da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Juiz Titular da 1ª Vara do Trabalho de Taubaté/SP. Coordenador e Pesquisador do Núcleo de Pesquisa e Extensão “O Trabalho além do Direito do Trabalho” (FDUSP). Livre-Docente em Direito do Trabalho e Doutor em Direito Penal pela FDUSP. Doutor em Ciências Jurídicas pela Faculdade de Direito de Lisboa.

Maria Maeno

Médica graduada pela Faculdade de Medicina da USP, pesquisadora da Fundacentro. Coordenadora do CEREST/SP de 1990 a 2006. Mestrado e Doutorado pela Faculdade de Saúde Pública da USP. Membro do Coletivo de Saúde do Trabalhador do Instituto Walter Leser - FESPSP.

José Carlos do Carmo

Auditor fiscal do trabalho e técnico do CEREST Estadual de São Paulo. Médico (USP). Mestre em Saúde Pública pela Universidade de São Paulo. Especialista em Medicina do Trabalho

Cláudio Maierovitch Pessanha Henriques

Sanitarista da Fiocruz Brasília. Foi Presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (2003-2005) e Diretor de Vigilância de Doenças Transmissíveis do Ministério da Saúde (2011-2016), Médico (USP)

RESUMO: O artigo historiciza a evolução recente da Covid-19 no Brasil e no mundo e a contextualiza, no campo jurídico trabalhista, como questão afeta ao meio ambiente de trabalho (CRFB, art. 200, VIII, in fine). Em seguida, identifica-a como pandemia, com possibilidades de evolução para endemia, e extrai do art. 20, §1º, “d”, da Lei 8.213/1991 as possibilidades de reconhecê-la, sob presunção legal, como doença do trabalho. A partir disso, para as hipóteses em que a contaminação do trabalhador se deve à exposição viral no meio ambiente do trabalho (incluídos os respectivos trajetos de ida e volta) demonstra a cominação legal, ao empregador, de responsabilidade civil objetiva (i.e., independentemente de culpa), pelo risco da atividade (i.e., independentemente de ato ilícito), nos termos do art. 14, §1º, da Lei 6.938/1981.

ARTIGO PUBLICADO ORIGINALMENTE EM Revista LTr | 2021 | Fevereiro

1 “O Brasil bateu a marca de 200 mil mortes em razão da pandemia do novo coronavírus. A atualização do Ministério da Saúde divulgada na noite desta quinta-feira (7) informa um total de 200.498 mortes em decorrência de covid-19”. Disponível em https://agenciabrasil.ebc.com.br/saude/noticia/2021-01/covid-19-brasil-chega-200-mil-mortes> acesso em 8/1/2020.

​

2 WHO issues a global alert about cases of atypical pneumonia. World Health Organization. Disponível em https://www.who.int/mediacentre/news/releases/2003/pr22/en/ > acesso em 02/09/2020.

 

3 Síndrome Respiratória Aguda Grave. Informação Técnica. Centro de Informações em Saúde para Viajantes. Disponível em http://www.cives.ufrj.br/informes/sars/sars-it.html > acesso em 02/09/2020.

 

4 Summary table of SARS cases by country, 1 November 2002 – 7 August 2003. World Health Organization. Disponível em https://www.who.int/csr/sars/country/2003_08_15/en/ > acesso em 02/09/2020.

 

5 OMS afirma que Covid-19 é agora caracterizada como pandemia. OPAS Brasil, 11 de março de 2020. Disponível em https://www.paho.org/bra/index.php?option=com_content&view=article&id=6120:oms-afirma-que-covid-19-eagora-caracterizada-como-pandemia&Itemid=812 > acesso em 13/09/2020.

 

6 Os países com casos confirmados de coronavírus. Disponível em https://noticias.uol.com.br/ultimasnoticias/afp/2020/01/30/os-paises-com-casos-confirmados-de-coronavirus.htm > acesso em 22/09/2020.

 

7 Primeiro caso confirmado de Covid-19 no Brasil ocorreu em SP e completa seis meses nesta quarta. Disponível em https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2020/08/26/primeiro-caso-confirmado-de-covid-19-no-brasil-ocorreu-emsp-e-completa-seis-meses-nesta-quarta.ghtml> acesso em 12/10/2020.

 

8 Brasil confirma primeiro caso de infecção pelo novo coronavírus. OPAS Brasil, 26/02/2020. Disponível em https://www.paho.org/bra/index.php?option=com_content&view=article&id=6113:brasil-confirma-primeiro-caso-deinfeccao-pelo-novo-coronavirus&Itemid=812 > acesso em 03/10/2020.

 

9 Primeira morte do Rio por coronavírus, doméstica não foi informada de risco de contágio pela “patroa.” Pública, 19/03/2020. Disponível em https://apublica.org/2020/03/primeira-morte-do-rio-por-coronavirus-domestica-nao-foiinformada-de-risco-de-contagio-pela-patroa/ > acesso em 03/10/2020.

 

10 Caso autóctone: “é o caso de doença que teve origem dentro dos limites do lugar em referência ou sob investigação”. (ROUQUAYROL e ALMEIDA FILHO, 2003)

​

11 Circulação para trabalho explica concentração de casos de Covid-19. Labcidade. Disponível em http://www.labcidade.fau.usp.br/circulacao-para-trabalho-inclusive-servicos-essenciais-explica-concentracao-decasos-de-covid-19/ > acesso em 12/10/2020.

 

12 No Brasil, baseando-se em cerca de 30 mil casos notificados de Covid-19 (dados do Ministério da Saúde coletados até 18.5.2020), o Núcleo de Operações e Inteligência e Saúde da PUC-RJ identificou que, dentre os infectados, quase 55% dos pretos e pardos morreram, contra 38% dos brancos, sobretudo em razão do menor acesso a bons serviços de saúde. Mesma variação se observa em função da escolaridade: pessoas sem escolaridade tiveram taxa de letalidade três vezes maior do que a de pessoas com nível superior (71,3% contra 22,5%). Correlações similares foram demonstradas nos Estados Unidos da América (APM Research Lab) e no Reino Unido (Office of National Statistics). Disponível em https://www.uol.com.br/vivabem/noticias/bbc/2020/07/12/por-que-o-coronavirus-mata-mais-aspessoas-negras-e-pobres-no-brasil-e-no-mundo.htm> acesso em 8/1/2021.

​

13 BRASIL: SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. RECURSO EXTRAORDINÁRIO Nº 664.335/SC. RELATOR: Ministro Luiz Fux. Plenário. DJ: 12.2.2015.

​

14 V., e.g., Lei 7.064/1982, art. 3º, II. In verbis: “A empresa responsável pelo contrato de trabalho do empregado transferido [para o exterior] assegurar-lhe-á, independentemente da observância da legislação do local da execução dos serviços: [...] II - a aplicação da legislação brasileira de proteção ao trabalho, naquilo que não for incompatível com o disposto nesta Lei, quando mais favorável do que a legislação territorial, no conjunto de normas e em relação a cada matéria”.

 

15 Ambos deram origem à Súmula Vinculante n. 25, pela qual “[é] ilícita a prisão civil de depositário infiel, qualquer que seja a modalidade de depósito”. Tal como o art. 5º, LXVII, porém, o art. 7º, XXII, também se encontra no Título II da Constituição e encerra direito humano fundamental. No primeiro dos arestos citados (voto vencedor), lê-se o seguinte: “[...] diante do inequívoco caráter especial dos tratados internacionais que cuidam da proteção dos direitos humanos, não é difícil entender que a sua internalização no ordenamento jurídico, por meio do procedimento de ratificação previsto na CF/1988, tem o condão de paralisar a eficácia jurídica de toda e qualquer disciplina normativa infraconstitucional com ela conflitante. [...]” (RE 466.343, rel. Min. Cezar Peluso, voto do Min. Gilmar Mendes, Plenário, j. 3-12-2008, DJE 104 de 5-6-2009, Tema 60).

​

16 Poluidor indireto é aquele que “não executa a atividade diretamente causadora do dano”, mas contribui para a lesão, desde que se vincule por um necessário “dever de segurança”; e tal será o caso, se entendermos que o empregador não “causa” a contaminação (porque o vírus já está circulando externamente, em condições de contaminação comunitária), mas a oportuniza, já que o meio ambiente de trabalho se transforma em uma “caixa de ressonância” contaminatória.

 

17 E “trabalho decente”, segundo a Organização Internacional do Trabalho, é todo trabalho produtivo e de qualidade, igualitariamente acessível e adequadamente remunerado, exercido em condições de liberdade, equidade, segurança (inclusive sanitária) e dignidade humana, apto a contribuir, qual condição fundamental, para a superação da pobreza, a redução das desigualdades sociais, a garantia da governabilidade democrática e o desenvolvimento sustentável. O conceito foi formalizado, na ordem jurídica internacional, em 1999, e depois reafirmado em 2008, na 97ª Conferência Internacional do Trabalho, com a aprovação da “Declaração da OIT sobre a justiça social para uma globalização equitativa” (Disponível em: https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/---americas/---ro-lima/---ilobrasilia/documents/genericdocument/wcms_336918.pdf. Acesso em 15.5.2020).

​

18 A portaria – que, a propósito, é muito mais adequada que a malsinada MP 927/2020 (e poderia tê-la substituído, com imensa vantagem, em matéria de saúde e segurança do trabalho) – dispõe, p. ex., no item 2.5 do seu Anexo I, que “[a] organização deve afastar imediatamente os trabalhadores das atividades laborais presenciais, por quatorze dias, nas seguintes situações: a) casos confirmados da COVID-19; b) casos suspeitos da COVID-19; ou c) contatantes de casos confirmados da COVID-19”. Compreendemos, porém, que suas medidas de prevenção precisariam ser mais elastecidas, a bem dos princípios da prevenção e da precaução, alcançando inclusive os contatantes de casos suspeitos. Na realidade, dentro de suas finalidades, pode-se considerá-la tímida, especialmente na comparação com os procedimentos adotados em países da União Europeia.

​

19 Impacto Covid-19 (coronavírus). Disponível em https://impactocovid.com.br/atividade-essencial.html > acesso em 03/10/2020

​

20 Ficha de investigação de caso de Síndrome Gripal suspeito de doença pelo coronavírus – Covid-19 (B34.2), 5/10/2020. Disponível em https://datasus.saude.gov.br/wp-content/uploads/2020/10/Ficha-Covid-19- 05_10_20_pdf.pdf > acesso em 12/10/2020.

​

21 Instrutivo de preenchimento da ficha de notificação de caso de Síndrome Gripal suspeito de doença pelo Coronavírus 2019 – Covid-19 (B34.2). Disponível em https://datasus.saude.gov.br/wpcontent/uploads/2020/05/Instrutivo-e-SUS-VE_V.Final_.pdf > acesso em 12/10/2020.

​

22 “A contrario”, e na dicção do mesmo documento, consideram-se casos descartados de Covid-19 ocupacional todos aqueles “casos de COVID-19 confirmados e registrados no e-SUS VE e Sivep Gripe que, após investigação epidemiológica, foi verificado que a doença NÃO mantém relação com o trabalho ou NÃO foi provavelmente adquirida durante as atividades laborais ou no trajeto de casa para o trabalho e vice-versa” (g.n.).

​

23 O que pode se tornar irrelevante, porém, a depender das funções exercidas, como esclarecido na seção anterior: se se tratar de empregado em teletrabalho, p. ex., a exposição labor-ambiental e domiciliar terminam por se confundir, para todos os efeitos. A respeito, aliás, veja-se o teor do PL 5581/2020, de autoria do Senador Rodrigo Agostinho (PSB-SP), para cuja redação o 1º Autor deste artigo teve a oportunidade de colaborar, precisamente no tema da saúde e segurança do trabalho. O texto estabelece, entre outras coisas, que, para os efeitos legais, “considera-se meio ambiente do trabalho o microssistema de condições, leis, influências e interações de ordem física, química, biológica ou psicológica que incidem sobre o homem no seu local de trabalho ou em razão de sua atividade laboral, esteja ou não submetido ao poder hierárquico de outrem, inclusive em seu âmbito doméstico (home office)” (art. 2º); e estatui, mais, que “[o]briga-se o empregador, de acordo com o estado atual da técnica, a implementar condições para o pleno bem-estar físico e psicossocial de seus teletrabalhadores, nos termos da legislação e das disposições administrativas complementares, que se prestarão notadamente à: I – prevenção de danos, em especial pela adoção de medidas técnicas de neutralização ou redução dos riscos inerentes à atividade econômica desenvolvida e ao respectivo meio ambiente de trabalho, sejam eles físicos, químicos, biológicos, psíquicos ou ergonômicos; II – proteção contra a degradação do meio ambiente de trabalho, inclusive no âmbito doméstico (home office), assim entendido o desequilíbrio decorrente de interações de ordem física, química, biológica ou psicológica, no local de trabalho e no seu entorno, que criem riscos proibidos ou incrementem os riscos inerentes à atividade econômica desenvolvida; III – proteção bastante contra os efeitos deletérios de tensões resultantes das condições de fadiga, da duração excessiva, do ritmo, do controle, das pressões psicológicas ou dos modelos de gestão do trabalho humano; IV – adaptação do local de trabalho, inclusive no âmbito doméstico (home office), incluídas suas instalações, máquinas, métodos e ferramentas, às características e capacidades física e mental dos trabalhadores; V – divulgação idônea e suficiente de informações e documentos labor-ambientais de interesse da sociedade em geral, da categoria profissional em específico ou do trabalhador individualmente considerado”.

​

24 O 1º Autor deste artigo foi o relator natural da causa, como está registrado. Nada obstante, reformulou o voto, quanto à extensão da responsabilidade da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos, à vista do entendimento dominante entre os demais julgadores. Entendia, originalmente, que o dever de prevenção/precaução da ECT deveria ter extensão bem maior do que aquela finalmente admitida, até mesmo à vista dos pressupostos teóricos admitidos, como o relativo à configuração do nexo de causalidade.

​

25 Sustentávamos, ao revés, que as linhas de crédito abertos pela MP 944/2020 pudessem ser ampliadas para permitir que as empresas incorporassem, a seus programas de controle médico e saúde ocupacional (PCMSO), ao menos durante o estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo n. 6/2020 (até 31.12.2020), exames laboratoriais ou farmacêuticos de testagem para identificação da Covid-19 e/ou do novo coronavírus. Com essa medida, o Governo contribuiria efetivamente para com o achatamento das curvas de contaminação. Não é, porém, o direito posto.

 

26 In verbis: “Sem obstar a aplicação das penalidades previstas neste artigo, é o poluidor obrigado, independentemente da existência de culpa, a indenizar ou reparar os danos causados ao meio ambiente e a terceiros, afetados por sua atividade. O Ministério Público da União e dos Estados terá legitimidade para propor ação de responsabilidade civil e criminal, por danos causados ao meio ambiente”.

​

27 Cfr. CLT, art. 223-B (na redação da Lei 13.467/2017).

​

bottom of page