INSTITUTO
WALTER LESER
Saúde coletiva & cidadania
Pandemia
5 de maio de 2022
“Depois que eu tive covid” ...
Lilian Primi
Todo mundo já ouviu ao menos uma vez esta frase de alguém para justificar pequenas, porém importantes, dificuldades: para realizar alguma tarefa ou movimento, se lembrar de algo, voltar para a academia ou retomar suas atividades cotidianas e de trabalho. Do motorista que reclama de cansaço e falta de energia: “Antes trabalhava o dia todo, até tarde. Depois que tive covid, não consigo mais”. Da moça, que se demora no balcão da lavanderia, para os que estão na fila: “A senhora tenha paciência, porque depois que tive covid, às vezes dá uns lapsos”.
Poucos destes pacientes procuram ajuda médica, ou algum tipo de atendimento. “De vez em quando eu tomo uma vitamina, prá ver se melhora a situação”, diz o zelador que passou a sentir mais cansaço depois que teve covid, ainda no início da pandemia. E os que procuram, reclamam da dificuldade em acertar o diagnóstico, ou mesmo conseguir que o médico entenda o que está sentindo. “Falta orientação do Ministério da Saúde para que os serviços possam identificar os quadros de covid longa ou de efeitos tardios da doença. Seria fundamental uma ação coordenada do SUS, com injeção de recursos humanos e materiais desde a atenção primária até os centros de reabilitação, e houvesse planos de recuperação e reabilitação. Milhares de trabalhadores podem estar com dificuldades na sua atividade de trabalho sem saber que pode ser sequela da covid", lamenta a médica Maria Maeno, pesquisadora em saúde do trabalhador da Fundacentro e do grupo de Saúde e Trabalho do Instituto Walter Leser, da Escola de Sociologia e Política de São Paulo (IWL-ESPSP).
TATEANDO NO ESCURO
Não existe um número consolidado dos que sofrem com sequelas no Brasil. Considerando as estimativas da Organização Mundial da Saúde (OMS) a respeito da incidência de covid longa entre os curados, as sequelas persistentes de covid-19, que envolve uma lista de mais de 200 sintomas, podem estar infernizando a vida de 2,8 milhões a 5,6 milhões de pessoas no Brasil, grupo que representa 10% a 20% de infectados que se curaram. “Esses números no Brasil são frouxos, vamos dizer assim, porque além da COVID ter sido muito mal cuidada por aqui, quase não tivemos testagem. Então temos muitos casos de pessoas que se infectaram, mas não ficaram sabendo na época e agora estão doentes”, diz a médica sanitarista Karina Calife, coordenadora do IWL-ESPSP. Ela diz estar atendendo muitas pessoas com dificuldades de retomar o trabalho em seu consultório no Centro de Referência em Saúde do Trabalhador (Cerest).
Segundo informações da Secretaria de Saúde da Prefeitura de São Paulo, até o dia 27 de abril, 21.880 pessoas estavam em acompanhamento nos serviços da rede de atenção à saúde do município. Todos “egressos de internação por Síndrome Respiratória Aguda Grave (Srag) por Covid-19”. Isso significa aproximadamente 31,4% dos 69.681 pacientes que receberam alta até agora na rede hospitalar da cidade, índice ainda maior do que o estimado pela OMS. Não se tem ideia do que aconteceu com os 2.337.008 infectados que passaram pelas UBSs, mas não precisaram ser internados.
Karina diz que os estudos sobre covid ainda são preliminares. “É uma doença nova para a ciência, mas para a vida das pessoas, parece ser um tempo muito longo", diz. Karina aponta essa demora em conseguir dados consolidados sobre o assunto, que não ocorre apenas no Brasil, como um limite importante neste momento e alerta que mesmo as informações médicas como sintomas mais comuns e grupos mais afetados, carecem de confirmação. O que se sabe até agora é que entre os mais de 200 sintomas, os mais comuns são os neurológicos. “A chamada névoa mental ou esquecimentos que não ocorria antes nos casos mais leves, até os mais graves, que podem chegar aos surtos psicóticos”, explica Karina. E também cefaleias resistentes, dores no corpo e cansaço ou fadiga; que atinge mais as mulheres entre 25 e 39 anos, trabalhadoras da educação e da assistência social. Pessoas que não fizeram repouso durante a doença também parecem ser mais vulneráveis entre os que tiveram a forma leve da doença e ficaram com sequelas. Para os que sofrem de alguma doença do sistema imunológico, a covid parece funcionar como um gatilho, que piora ou dá o start da doença.
O epidemiologista Rafael da Silveira Moreira, pesquisador da Fiocruz e professor da Medicina da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), também reclama da falta de testagem. “deixa a gente basicamente tateando no escuro com uma lanterninha”. Ele cita a diabetes como uma das doenças que pode piorar ou aumentar as sequelas da COVID e observa que existe uma ausência de definição do que é covid longa. “Há uma lacuna no conceito e até que se defina claramente o que é, vai ser difícil fazer um registro do fenômeno. Usamos alguns critérios observando os estudos feitos até aqui”, diz. Ele alerta também para uma certa confusão entre covid longa e sequelas da internação prolongada e Karina, para o risco de creditar à covid sintomas que podem vir de outros problemas. “Vamos precisar de mais tempo para entender melhor o que acontece. A doença muda muito rápido; a perda de olfato, por exemplo, que era um dos sintomas mais comuns, já não é mais”, explica.
Karina alerta que a Covid Longa é uma doença sistêmica, que pode atingir
muitos sistemas do corpo e ainda, que pode haver diferenças entre uma variante e outra. “Não se pode olhar apenas para os sintomas respiratórios (pulmão). Precisa de uma política pública do governo federal que dê à rede de atenção à saúde, linhas de cuidado e protocolos de atendimento contemplando todos os aspectos", diz Karina. ”É preciso incluir a atenção básica no processo. Hoje cada Estado ou município está fazendo de um jeito. São Paulo, por exemplo, atende principalmente os egressos da rede hospitalar E a Covid Longa pode acontecer depois de uma doença aguda branda”, explica.
Maria aponta, de novo, a falta ação do governo central e de pactuação com os estados e municípios. “Não precisa ter centros de habilitação física em cada cidade, como muitos pensam. É preciso que se faça um planejamento dos processos de reabilitação que contem com toda a estrutura do SUS, desde atenção primária da saúde até os centros mais especializados. Diga-se de passagem, que essa necessidade não é de agora, mas teríamos que aproveitar este momento em que muitas pessoas se deram conta da necessidade de serviços e rede capazes de prevenir incapacidades prolongadas e reabilitar pessoas com sequelas.”.
O ideal, segundo a médica, é que o SUS fizesse um chamamento. “Dizendo assim: se você teve COVID e sente algum dos seguintes sintomas: cansaço, com dores no corpo ou dor de cabeça, alteração de paladar ou olfato, tem lapsos de memória ou ou dificuldade de concentração, procure a unidade básica de saúde mais próxima. Não seria a melhor coisa a fazer? Por outro lado, a unidade básica de saúde teria que estar estruturada em todos os aspectos para acolher essa demanda ”, diz.
ANGÚSTIA E MEDO
Também não se sabe ao certo como a Covid Longa se instala e evolui, o que pode gerar um estigma na vida da pessoa: no âmbito profissional, pela desvalorização e perda de rendimento; no âmbito da saúde pela dificuldade e mesmo ausência de diagnóstico correto e de atendimento na rede de assistência; e no cotidiano, já que acarreta piora importante na qualidade de vida. Porém, mais do que essa piora em si, o que parece incomodar é a incerteza a respeito do futuro. “Os médicos não sabem quanto tempo vou ficar assim. Já me disseram que ia acabar em alguns meses, mas já faz mais de um ano e eles continuam dizendo que vai passar”, conta um assistente jurídico que teve covid leve e meses depois, passou a ter alterações no paladar e olfato.
Hoje seu diagnóstico é parosmia – que ele chama de “olfato estragado” – decorrente da Covid Longa. Sentindo-se enojado com o odor dos alimentos que compõem praticamente todo o cardápio usual, sentar-se para se alimentar tornou-se um enorme sofrimento, que o levou à depressão e ansiedade. A saída que encontrou foi esquecer o que diziam os médicos e aceitar que vai ficar assim para sempre. “A ansiedade diminuiu e estou conseguindo me adaptar. Até melhorou um pouco”, conta.
“A falta de um prognóstico é angustiante mesmo”, diz Rafael, que juntamente com Karina, participa de uma das primeiras pesquisas sobre sequelas que inclui infectados que não passaram por hospitais (leia ao lado). Além da angústia pela ausência de um prognóstico, a maioria tem medo de se expor como alguém com sequelas da doença, como o assistente jurídico citado antes, que não quis se identificar. Ele não é o único funcionário do judiciário com sequelas. Neli Gamboa, assistente jurídico no Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), deu um depoimento para o projeto de pesquisa COVID-19 como Doença Relacionada ao Trabalho (DOSSIÊ Covid no Trabalho) onde conta sua experiência com a névoa mental e diz que tem vários colegas com alguma dificuldade depois da doença. Só no período de janeiro até o dia 15 de fevereiro, o TJ-SP registrou 904 licenças médicas por suspeita ou confirmação de covid e 1.244 pedidos para exercer as funções temporariamente a distância. Em janeiro o Tribunal tinha, segundo notícias divulgadas na época, 59 magistrados e 300 servidores afastados.
Estes números caíram, acompanhando a tendência geral do País, de 266 casos confirmados ou suspeitos na semana de oito a 14 janeiro, para 17 no mesmo período de março (Semana de oito a 14). O número de servidores afastados do trabalho caiu de 366 em 21 janeiro para 14 em 14 de março, segundo informações da diretoria de Licenças Médicas, Perícias Médicas, Reinserção de Servidores e de Assistência e Promoção da Saúde, que no entanto, não acompanha ou tem informações sobre quais ou quantos ficaram com sequelas. Se considerarmos os índices estimados pela OMS, este grupo seria de 212 a 430 funcionários.
A Comunicação do DOSSIÊ Covid no Trabalho convidou alguns deles para relatar suas experiências, mas apenas um, Danilo Araújo Chamadoira, além de Neli, efetivamente aceitou. “É natural que não queiram se expor, porque ficam desvalorizados nos seus ambientes de trabalho”, explica Maria, que coordena a pesquisa. O estudo entrou na fase das entrevistas qualitativas, e Maria diz que tem se deparado com muitos relatos de sequelas, mas não consegue dimensionar de forma realista o problema. “É necessário, de novo, uma ação do governo central, que continua omisso”, diz.
Sequelas persistentes de covid-19 podem estar infernizando a vida de 2,8 milhões a 5,6 milhões de pessoas no Brasil
PESQUISAS SÃO PRELIMINARES, MAS AVANÇAM
POR TODO O CORPO
O gráfico acima mostra os locais do corpo que podem ter sequelas da COVID-19, que ocorre mesmo nas formas leves ou assintomáticas da doença. O primeiro critério para diagnóstico é o reaparecimento de alguns sintomas cerca de três meses depois da cura (quando não existe mais vírus no organismo). A imagem está publicada numa reportagem da Revista Faesp, que detalha o que os pesquisadores conseguiram descobrir sobre a doença até o momento e pode ser acessada abaixo.
RELATOS
Neli Gamboa (à esquerda), sofre com a névoa mental, Danilo Araujo Chamadoira (no centro) se sente cansado. Os dois são assistentes jurídicos. A psicóloga Rosemeire Gonçalves passou a ter lapsos de memória.
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PROTOCOLOS
OMS – PAHO : Intervenções Recomendadas em Saúde Mental e Apoio Psicossocial (SMAPS) durante a Pandemia. Junho de 2020
Na roda de conversa VAMOS FALAR SOBRE COVID LONGA? (acima), as médicas e pesquisadoras Melania Amorim (Imip), Michelle Fernandéz (UnB) e Karina Calife, do IWL e da Santa Casa SP, falam sobre a covid longa a partir do que encontraram até o momento. As três, e também o professor de saúde coletiva Rafael Moreira, do Centro de Ciências Médicas (CCM) da UFPE, fazem parte do grupo da pesquisa Covid longa no Brasil: uma análise sobre sintomas e assistência. O público alvo são maiores de 18 anos que já tiveram covid-19 e permanecem com sintomas após a fase aguda da doença, que estão sendo contatados por um questionário aberto e distribuído na rede, o que inclui infectados que não passaram pelos hospitais. "Queremos entender melhor. A covid longa é tão nova quanto a covid, não sabemos o prognóstico. Vamos levantar informações para organizar os postos de atendimento, que devem estar preparados", diz Rafael. O estudo ainda está na fase de coleta e até agora recebeu mais de 2 mil respostas.
Veja abaixo outros quatro estudos relevantes sobre o tema, estes já encerrados e com dados consolidados.
ESTUDO 1
Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HC-FM-USP0. Coordenação: psiquiatra Geraldo Busatto - Entre os pacientes que se recuperaram da Covid-19 moderada ou grave, 85% apresentaram pelo menos um sintoma que reduz sua produtividade ou qualidade de vida. Estudo foi feito com 820 pacientes hospitalizados no HC-USP entre abril e maio de 2020 e fez reavaliações com questionários e exames de 6 a 11 meses depois.
ESTUDO 2
Departamento de Saúde Mental da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais. Coordenação: professor Marco Aurélio Romano-Silva - Acompanhamento a partir de agosto de 2020, casos leves de COVID-19 ocorridos no último ano, com idade entre 18 e 60 anos e diagnóstico confirmado de SARS-CoV-2 por RT-PCR. Primeiros resultados indicam que cerca de 25% deles (1 em cada 4) ficou com algum tipo de dificuldade no processamento visuoespacial, que engloba habilidades como percepção visual e orientação espacial. (Artigo com dados atualizados em pré-print)
ESTUDO 3
Departamento e Instituto de Psiquiatria, Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HCFMUSP). Coordenação: médico Rodolfo Furlan Damiano - 425 adultos foram avaliados 6 a 9 meses após a alta hospitalar com uma entrevista psiquiátrica estruturada , testes psicométricos e uma bateria cognitiva. Os diagnósticos de 'depressão', 'transtorno de ansiedade generalizada' e 'transtorno de estresse pós-traumático' foram estabelecidos respectivamente em 8%, 15,5% e 13,6% da amostra. Após o início da pandemia (ou seja, no ano anterior), a prevalência de 'depressão' e 'transtorno de ansiedade generalizada' foi de 2,56% e 8,14%, respectivamente. O declínio da memória foi relatado subjetivamente por 51,1% dos pacientes.
Desenvolvida em parceria da Unicamp com a USP, analisou ressonâncias magnéticas em voluntários que haviam se infectado por covid. A primeira fase revelou que o vírus, no cérebro, ataca os astrócitos, fonte de alimentação dos neurônios, prejudicando o seu funcionamento e levando-os à morte. Isso é a origem da perda de memória, falta de concentração, déficit de atenção, raciocínio mais lento e sonolência. Na segunda fase os pesquisadores vão acompanhar os voluntários nos próximos cinco anos para estudar a evolução do quadro e indicar possíveis tratamentos. LEIA ARTIGO